Assédio nos tatames (parte 4): Também pode ser moral
Clique nos links para ler os capítulos anteriores do especial:
Parte 1 – Introdução
Parte 2 – A culpa não é da mulher
Parte 3 – Dentro ou fora?
Na verdade a minha intenção era falar apenas sobre assédio sexual, mas muitas mulheres alertaram sobre um ponto, que falo um pouco em meu primeiro texto sobre machismo: o assédio moral. Portanto, quando eu montei as perguntas da pesquisa, como não havia pensado no moral, acabei não acrescentando. Mas venho aqui mostrar o resultado de “como foi o assédio?”.
O assédio moral parte da dúvida quanto à capacidade de uma pessoa, no jiu-jitsu isso acontece quando alguém fala algo como “vou rolar com ela porque ela é menina e quero descansar”.
"Alguns rapazes nos inferiorizam por sermos mais fracas e mais delicadas. Tem um faixa roxa na minha equipe que nunca treinou comigo e ele fala que não treina com mulheres porque não vão acrescentar nada ao jogo dele, fora esse sempre tem um comentário sobre descansar rolando com uma garota, posturas grosseiras de homens vazios, que têm medo do quanto uma mulher pode evoluir e se tornar o que quiser, mesmo no jiu-jitsu."
Esse tipo de julgamento de capacidade pode até virar uma forma de bullying.
"Tive decepções com meu antigo professor, depois de faixa preta ele virou outra pessoa e troquei de academia por conta disso. Ele passou a ter posturas erradas como chegar atrasado, falar mal dos alunos e inventar histórias. Foram dois anos e meio, treinando todos os dias e me abdicando de tantas coisas… Sempre fui uma aluna empenhada e ver seu professor dizer que me graduou ‘por dó’, dói. Hoje estou treinando em outro time, mas dentro da mesma equipe. Mas sonhava tanto em receber minha faixa sendo amarrada pelo meu mestre como sonhava em ser a primeira faixa preta dele. Tinha respeito e admiração. E tudo isso foi pelo ralo. Me sinto meio ridícula e às vezes penso em parar."
Falando em relação ao “vou descansar com ela porque ela é mulher”, o que costuma acontecer bastante no meio do jiu-jitsu são os homens não aceitarem perder para mulheres (na verdade rola na vida, e o jiu-jitsu é só mais um meio). Isso, infelizmente, causa um constrangimento muito maior do que apenas mental, mas também pode causar sérias consequências físicas, já que não temos como negar: o homem é geneticamente mais forte do que uma mulher, já que ele produz algo chamado testosterona que compõe timidamente o corpo feminino, em números quase insignificantes quando comparada à quantidade presente no corpo masculino. Sendo assim, os caras acabam vindo para cima na intenção de se saírem melhor e abusando de sua força, em uma verdadeira guerra dos sexos sem sentido, pois se esquecem que o jiu-jitsu foi criado para o mais fraco ganhar do mais forte.
Isso me fez lembrar um vídeo engraçado que ilustra um pouco essa coisa de técnica superior. A Mackenzie Dern, na época faixa marrom, esteve num programa de televisão japonês sendo desafiada a confrontar um faixa preta de judô. Algumas pessoas do judô costumam treinar jiu-jitsu e vice versa, mas para quem não é dos dois lados, o fato é que o judoca tem desvantagem no chão e o jiu-jiteiro, em pé. Nesse vídeo, Mackenzie deu um trabalhão para o judoca e, nitidamente, ele fica um pouco incomodado em alguns momentos da luta e quer se aproveitar de sua força.
Mas muitas vezes o cara não sabe o que faz e acaba mesmo machucando a menina usando demasiada força. Eu falo um pouco disso também no texto sobre machismo que citei no início.
Há um colega de treino que várias meninas tiveram problema com ele. Além de discursos machistas (…), comigo aconteceu um episódio que me traumatizou: (…) Durante um treino, tive que fazer um rola com ele. Ele me finalizou com um estrangulamento na montada. Após isso, ele começou a explicar com certa brutalidade o porquê eu fui finalizada. “Se você fica olhando para cima, pega o seu pescoço” e nisso ele me estrangulava a ponto de tossir; “Agora se você virar o rosto (e empurrava o meu rosto contra o tatame com força), aí não pega!”. Ele repetiu isso umas três vezes, me estrangulando com uma força desnecessária, já que ele estava fazendo uma demonstração e não lutando. Depois desse episódio, eu fujo dele no tatame. Nunca mais quis rolar com ele.
E mais: quem nunca passou por uma situação do cara pedir para parar a luta bem durante aquele golpe primordial que você estava aplicando que atire a primeira pedra! Você está lá, no ápice de seu rola, chega naquele tão esperado arm lock e o cara para: “viu, deixa eu te mostrar como você encaixa melhor”.
Também é comum uma mulher finalizar um homem e no final ele falar “nossa, eu estava cansado”. Aham, querido. Mérito do seu cansaço, mesmo. Mas percebam que toda academia tem o cara que não rola com mulher. A desculpa: se sentir desconfortável. Desconforto por quê? No jiu-jitsu somos todos iguais. Será que é isso mesmo?
O que também acontece é que há simplesmente os caras que não acreditam nas meninas, sejam eles professores ou alunos. Estando lá, temos um objetivo em comum. Somos minoria, mas não precisam nos assustar por estarmos ali. Queremos a mesma coisa e vamos chegar tão longe quanto (ou até mais) que vocês.
Ah, e uma vez falei também aqui sobre a Monique Elias ser toda vaidosa e treinar, porque eu acho engraçado que a galera pensa que as meninas do jiu-jitsu não têm o direito de se arrumar. Isso parte justamente da ideia de que, para ser dura e forte é preciso chegar o mais próximo possível do que são os homens, daí eles esperam que nós possamos negar tudo que é do universo feminino. Uma coisa não exclui a outra!
Brincadeiras de mau gosto e piadas machistas são coisas muito comuns que muitas vezes acabam virando normal (…) Já ouvi de um mestre bem próximo que só dá aulas para mulher porque não pode dizer não. Uma vez em um rola, o meu oponente usou muita força. Quando reclamei, ele me mandou ir para o salão de beleza porque ali era lugar de homem. (…)
Nós vamos ao salão de beleza, sim, mas isso não significa que não podemos treinar por conta disso. Podemos ser o que quisermos, e então se quisermos treinar depois de fazer uma escova, nós podemos. Ou se quisermos sair do tatame, tomar um banho e colocar um vestido maravilhoso e salto alto, também podemos. Não somos piores no jiu-jitsu por sermos vaidosas ou arrumadas e comentários desse tipo nos incomodam. Bem como aqueles comentários, do tipo “Quer moleza, vai fazer ballet”, sabe? – Amigo, vai lá fazer uma aula de ballet e depois você conta pra gente.
"(…) Mostrei nos treinos que não estava ali por modinha ou para ficar olhando físico dos caras, eu treinava pesado como eles e era caladona na minha, então numa noite rolando tinha dois rapazes quando comentaram pra todo mundo ouvir que eu era sapatão. Fiquei muito mal com isso. (…) Eu estava muito bem nos treinos sempre fui muito competitiva e dava o meu melhor, tinha me apaixonado pelo Jiu-Jitsu e já tinha perdido 10kg em pouco tempo, mas com tudo isso decide parar e não procurar outra academia por conta do que já passei (…)."
Pois é, muitas vezes temos que engolir o choro, porque quando parte de nós ele é interpretado como uma demonstração de fraqueza. Quantas vezes ainda teremos que ouvir “tô rolando igual menininha hoje”? Algumas pessoas não falam por mal, elas realmente não têm nada contra nós, mas, por viverem em uma cultura em que falar isso é normal, acabam repetindo frases desse tipo sem se darem conta do significado (e, aos desavisados: o significado é de que mulher é frágil e fraca). Faz parte da nossa desconstrução lembrar-lhes que não somos uma massa única com ações e reações iguais, por isso “como uma garota” não deveria ser algo ruim.
Segue também esse por caminho o fato de termos que fazer algo sempre de forma primorosa para que sejamos reconhecidas. No jiu-jitsu, não podemos perder, não podemos ser finalizadas e não podemos desistir sob pena de sermos tachadas de fracas e ouvirmos que “mulher é assim mesmo”. Enquanto os homens, nessas mesmas situações, podem facilmente ter qualquer atitude. Temos que nos provar merecedoras inúmeras vezes mais, para que possamos, então, pertencer àquele lugar.
Mas, claro, temos as exceções e mais pra frente vou publicar um vídeo aqui com o direito de defesa masculino, hahaha porque por sorte temos homens sim que reconhecem o girl power!
Quem aqui é sexo frágil, minha gente? Caso tenham dúvidas, é só cair pra dentro, hahaha.
Bora para os treinos e semana que vem temos o último texto sobre esse assunto chato, porém necessário. Vamos falar sobre como denunciar. Até lá!
Assédio nos tatames (parte 4): Também pode ser moral
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