Uma vitória contra a intolerância: como o Ibra da Roma desafiou a morte para fugir da fome
Ebrima Darboe estava pronto para partir. Tinha apenas 14 anos e chorava muito quando abraçou sua mãe, seu irmão mais novo e suas duas irmãs antes de iniciar uma longa e perigosa viagem que o levaria de Bakoteh, um distrito de Serekunda, na Gâmbia, até a Líbia, de onde ele pretendia alcançar a Europa.
Àquela altura seu destino final era incerto, e se alguém lhe dissesse que cerca de cinco anos depois ele estaria vestindo a camisa da Roma contra o Manchester United por uma competição da UEFA, por maiores que fossem seus sonhos, ele mesmo desconfiaria.
Atravessar em veículos lotados e insalubres os mais de 3.600 quilômetros que separam a pequena Gâmbia da Líbia era só a primeira adversidade que aquele garoto, órfão de pai já havia alguns anos, enfrentaria. Darboe, como muitos refugiados pelo planeta, partia com planos vagos, mas um objetivo claro: fugir da fome, ganhar dinheiro e ajudar sua família. Se possível, jogando futebol.
Após duros meses de viagem, quando finalmente conseguiu chegar à Líbia, as coisas não melhoraram. Pelo contrário: exposto à máfia de tráfico de pessoas que ganha dinheiro explorando o sonho de milhares de seres humanos em condições de necessidade, o menino foi submetido a diversos tipos de violência. Fugir ainda era sua prioridade.
Começava então a segunda etapa da viagem: como fazem milhares de refugiados todos os anos – e como morrem muitos deles também todos os anos –, Darboe conseguiu espaço numa precária embarcação que partia da Líbia em direção à Sicília, na Itália. O risco de cruzar o Mar Mediterrâneo naquelas condições, sem nenhuma garantia de segurança, é enorme e causa centenas de histórias dramáticas e tocantes ano após ano .
“São viagens desumanas e não existe uma só coisa da qual não se tenha medo durante essa travessia, mas certamente a pior sensação é a de poder morrer a qualquer momento”, conta à ESPN Miriam Peruzzi, hoje agente (e como veremos à frente quase parente) do atleta. Ela seria, algum tempo após a chegada do garoto à Sicília, uma das principais responsáveis pelo conto de fadas que Ebrima Darboe tem vivido nas últimas semanas.
Ao desembarcar na Itália, o garoto de boa estatura (ele tem hoje 1,80m) era só pele e osso: pesava apenas 50 quilos, 20 a menos de seu peso atual. Como menor de idade desacompanhado, acabou sendo acolhido pelo SPRAR, um sistema criado pelo governo italiano para dar proteção a refugiados que chegam ao país em busca de asilo.
A instituição, então, encontrou para ele uma provisória casa de família na cidade de Rieti, região do Lácio. Foi ali que Darboe reencontrou-se com a bola, um outro amor que havia deixado em sua terra natal junto à mãe e irmãos. “Havia um campinho bem em frente de casa, atrás de uma mesquita. A minha primeira bola era feita de pano, eu não a largava e chorava se minha mãe a tirasse de mim”, contou o jogador em uma das (ainda) poucas entrevistas concedidas como jogador da Roma.
Em sua nova cidade, Darboe – cujo curioso apelido é “Ibra”, o mesmo do veterano craque sueco do Milan – passou a jogar na escola de futebol Young Rieti, que o ajudou também no processo de se inserir na comunidade local, fazendo com que o garoto passasse a frequentar a escola, onde ele aprendeu a falar bem italiano.
Persistência e descoberta
Foi aí que Miriam Peruzzi entrou em sua vida. Trabalhando como caça-talentos para clubes importantes da Europa, ela estava em Rieti para assistir a jogos da Scopigno Cup, um importante torneio com jovens de grandes clubes. Através de um amigo, Darboe ficou sabendo de sua presença na cidade e não teve vergonha ao surgir do nada no estádio em que ela estava para pedir que fosse ver seu jogo de amadores, onde poderia mostrar seu talento.
Miriam ouviu o pedido, mas não atendeu. Seu objetivo ali era outro. No dia seguinte, insistente, Darboe reapareceu e mais uma vez fez o apelo para que ela o visse jogar. A agente relembra: “Foi então que eu pensei nas dificuldades que tive para ser aceita num mundo machista como o futebol. E se eu consegui é porque tive quem me ajudasse, então pensei que deveria também tentar ajudar ao Ibra”.
Sorte dele. Bem impressionada com a qualidade do garoto, ainda que num jogo de amadores longe das condições ideais para se fazer tal avaliação, Miriam Peruzzi sugeriu à Roma que fizesse um teste com o garoto. Assim como ela, a Roma não se arrependeu: “Depois de apenas 20 minutos, [Massimo] Tarantino, na época o responsável pela base da Roma, me perguntou se eu gostava do clube. Foi maravilhoso!”, contou Darboe.
Era agosto de 2017, e com 16 anos completados havia dois meses, Ebrima Darboe já poderia se considerar um jogador da Roma. A partir daquele momento, com auxílio da Fifa, o clube começou a tocar as complexas questões burocráticas em relação ao asilo do garoto, além de providenciar também a obrigatória educação para jovens atletas em situações do gênero.
Nas categorias de base da Roma, um novato e ainda tímido Darboe foi bem recebido pelo técnico Alberto De Rossi, ex-jogador do clube e pai de um outro volante, pelo menos por enquanto bem mais famoso que o gambiano: o campeão do mundo Daniele De Rossi.
Dois anos se passaram e tão logo completou 18, Darboe pôde, já maior de idade, assinar seu primeiro contrato como jogador de futebol, válido até 2023, pelo qual passou a receber 50 mil euros brutos por ano. Com os descontos, a cifra cai para cerca de 30 mil euros, o que mensalmente significa algo em torno de 16 mil reais, dos quais boa parte Darboe manda para a família em Bakoteh.
Em campo, o volante correspondia. Tanto que já no dia 27 de outubro de 2019, como consequência das muitas lesões no elenco profissional, acabou convocado para ficar no banco no jogo Roma x Milan pelo Campeonato Italiano. Na ocasião, não faltou quem apontasse a ironia de a chance surgir justamente contra o time de Matteo Salvini – um dos políticos mais relevantes da Itália e ao mesmo tempo um dos maiores opositores à entrada de refugiados no país.
Naquela partida, porém, Darboe não jogou. Sua estreia como profissional só viria ocorrer mais de um ano e meio depois, no último 2 de maio, quando Darboe substituiu Gonzalo Villar para jogar os 8 minutos finais de Sampdoria x Roma. Quatro dias mais tarde e veio a estreia europeia, contra o Manchester United pela Liga Europa: quando o zagueiro Smalling se machucou, ao invés de utilizar as opções para a posição que tinha no banco, o técnico Paulo Fonseca preferiu colocar Darboe em campo, recuando Mancini, um zagueiro titular que havia iniciado como volante.
A boa atuação de Darboe nos 60 minutos contra o United foi suficiente para lhe garantir a primeira titularidade com a Roma já na partida seguinte, neste último domingo, na vitória por 5 a 0 sobre o Crotone pelo Campeonato Italiano. À sua atuação, o rigoroso jornal La Gazzetta dello Sport atribuiu uma boa nota 6,5, acompanhada por alguns elogios.
A segunda família
Um dia antes de sua estreia como titular da Roma, o blog tentou contato com o jovem Ibra pelas redes sociais para esclarecer duas dúvidas simples. Simpático, em italiano e com emojis, ele respondeu lamentando não poder dar entrevistas, mas enviou-nos o contato de Miriam Peruzzi.
A quem, aliás, fez questão de agradecer logo na primeira chance que teve para falar com a imprensa após enfrentar o Manchester United. “Conhecer a Miriam mudou minha vida, porque ela me transformou em parte da sua família. Eu era muito novo e precisava de uma família. Me senti em casa com eles, então queria muito agradecer à família Peruzzi porque sei que eles estão nos assistindo”, disse, emocionado, em entrevista à Sky Itália.
Ao blog, Miriam Peruzzi explicou melhor a relação do novo volante da Roma com seus pais: “Meu pai é técnico de futebol, ele e Ibra sempre passaram horas ao telefone falando sobre tática. Nos dias em que ele estava livre, Ebrima sempre vinha ficar com a gente, com a nossa família, então meus pais decidiram adotá-lo”.
A relação dos Peruzzi com o garoto, é bom ressaltar, começou bem antes de que seu sucesso como jogador tenha se transformado em algo aparentemente inevitável. E assim, na Itália, Darboe encontrou não só a chance de ganhar dinheiro e ajudar sua família fazendo o que mais gosta. Ele encontrou, também, uma nova família, novos amigos e um mundo que hoje, quem diria, parece não lhe impor mais fronteiras ou limites.
Tudo isso não o impediu de, quando questionado sobre a fábula que parece viver, lembrar-se dos refugiados que não tiveram a mesma sorte: “Quando eu penso em quem não conseguiu me dá uma tristeza enorme, é uma experiência que eu não desejo a ninguém”.
Na mesma entrevista à Sky Itália, ele mandou uma mensagem aos que de alguma forma almejam uma trajetória parecida: “Diria para que tenham esperança e deem o máximo, que continuem acreditando nos seus sonhos”. Na era de influenciadores e instagramers, a frase pode soar um tremendo clichê ausente de qualquer valor. Partindo de Ebrima Darboe, é uma inquestionável lição de vida.
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Veja trechos da entrevista de Darboe após o jogo contra o Manchester United (em italiano):
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