Uma noite de Hunter Thompson em Liverpool às vésperas da Copa do Mundo
Dias de coberturas em grandes eventos são longos. Aquele 3 de junho não fez parte da Copa do Mundo, mas era como se fizesse, afinal, o Brasil entraria em campo para enfrentar a Croácia no penúltimo amistoso antes do torneio.
Fomos antes à casa de uma família brasileira que vive nos arredores do mítico Anfield. Fomos convidados para um churrasco, que viraria parte da pauta. Na verdade, quem foi convidado foi o João Castelo Branco, que chegou com mais dois jornalistas na mala - este que vos escreve e Antonio Strini, repórter do site.
Lá conheci uma bebida gaseificada de limão siciliano que parecia refrigerante, mas não era oficialmente. Não pudemos aceitar as cervejas geladas, afinal, em pouco tempo estaríamos no ar, ao vivo, para todo Brasil e posteriormente nas arquibancadas para o trabalho. Bebi, gostei, balbuciei palavras de elogio e pouco tempo depois, mesmo sem nunca ter visto aquela bebida antes, sem conhecer seu nome, sem jamais ter pesquisado ou clicado em qualquer link dela, apareceu um post patrocinado da maldita em meu Instagram.
Comemos bem, churrasco brasileiro com carne boa e no ponto. Já não como mais carne mal passada como fazia antes, praticamente crua. Aliás, o futuro da humanidade é deixar de comer carnes, mas ainda não estamos preparados para a ausência de churrascos. Meu caso.
Seguimos para Anfield e no caminho entrevistamos brasileiros e croatas. Paramos em uma padaria de trabalho cooperativo da comunidade, que também fazia parte da pauta do João para a matéria do dia. Em uma cobertura assim, fazemos o ao vivo para toda programação, produzimos a matéria contando a história do dia, abastecemos todas redes sociais e nos divertimos muito.
Somente quem já foi a Liverpool deve conseguir descrever, ou tentar descrever, o que é o futebol naquela cidade. A região do estádio é simples, e ao redor dele estão diversos pubs, incluindo o bar onde toda história do Liverpool começou. A partida era entre seleções, mas o clima era espetacular - até mesmo o sol ajudou, algo raro por lá.
Um dos principais assuntos era o retorno de Philippe Coutinho à cidade após a negociação com o Barcelona. Diferentemente do que muitos de fora poderiam imaginar, não havia rancor, ódio ao brasileiro por parte dos reds. O clube é muito maior do que qualquer atleta, e este seguiu sua história depois de ter escrito belo capítulo na Inglaterra.
O jogo, bem, acho que todos se lembram. O Brasil venceu a Croácia por 2 a 0 e Neymar voltou a atuar, entrando no intervalo. Ele e Roberto Firmino, ou Bobby Firmino como os torcedores locais gritaram durante toda partida, marcaram os gols. A seleção brasileira caiu nas quartas de final da Copa e os croatas foram vice-campeões mundiais.
Normalmente, pós-jogo do Brasil é um caos. São muitos jornalistas, muita gente mesmo, e acaba virando bagunça. Em Anfield o local para a zona mista, onde os jogadores passam, não é grande. Na Premier League, não há tanta imprensa nessa situação pela falta de direitos. Daí quando aparece um Neymar ou um Philippe Coutinho vira uma montanha de pessoas com microfones e câmeras, dependendo da boa vontade de outras de banho tomado, cheirosas e nem sempre sorridentes. Ossos do ofício, de ambos lados. Já a coletiva, que aconteceu antes, foi tranquila com Tite, sem aglomerações.
Depois que acaba tudo isso fazemos mais entradas ao vivo. Explicações táticas, relatos do jogo em si, impressões de tudo que vimos e quem estava em casa ou no estúdio não pôde ver, enfim, fechamos a conta. Ou quase.
Aí começa o terceiro turno de trabalho.
Estávamos hospedados em um simpático hotel chamado Beech Mount, relativamente perto do estádio. De acordo com o site dele, possui arquitetura vitoriana. A rua era tranquila, transversal a uma grande avenida e com um McDonald's na esquina. Bem na frente havia uma academia pequena, bem com cara de local. Poucas pessoas circulando por ali durante o dia.
O gerente era extremamente simpático, e o João insistia que ele era muito parecido com um personagem de Breaking Bad, o Gus, dono da rede Pollos Hermanos. Na noite anterior, o alarme de incêndio tocou e o João desceu desesperado para a recepção. Conversou com o nosso amigo gerente que, tranquilamente, informou que não devia ser nada, no máximo clientes fumando no quarto e desligou o alarme.
Os quartos eram confortáveis e simples, mas com péssima internet. Ou seja, impossíveis para quem precisava trabalhar com envio de dados.
Depois da vitória brasileira, voltamos ao hotel e montamos uma espécie de redação no restaurante, localizado no térreo, ao lado do bar. Lá a internet era boa e a cerveja gelada. Eu tinha que escrever meu relato do jogo para o blog; o Tonhão precisava fechar as matérias para o site; e o João tinha que finalizar a edição do VT para o SportsCenter, além de gravarmos para o podcast também. E ainda chamamos os colegas Ulisses Neto (Jovem Pan), Fred Caldeira (Esporte Interativo) e Caio Carrieri (UOL) para seguirem conosco até a nossa improvisada redação.
O filho de um amigo, que mora em Manchester, foi até Liverpool para assistir o jogo e depois nos acompanhou nas primeira horas daquela madrugada. Fico aliviado que ele tenha ido embora para a estação de trem antes das cenas de Medo e Delírio que dominaram o local.
À medida que o tempo avançava, cada um de nós finalizava o trabalho. Baldes com Becks apareciam na mesma proporção na mesa. Estranhamente, o bar começava a ficar bem lotado também. Pessoas fantasiadas, homens e mulheres com as mais variadas vestimentas, todos muito alegres. Senhores ficavam nas máquinas de apostas e do lado de fora irlandeses bebiam em mesas, onde mais cedo acompanharam o mundial de dardos.
A graduação alcoólica de todos não parava de subir. Todos os computadores já tinham sido desligados e a interação com os demais hóspedes e visitantes já era intensa. A movimentação no bar era grande, mas seguimos para o bilhar. Os laptops passaram a funcionar como caixas de som. Música brasileira, lógico, e pelo que me lembro, sertaneja.
"Crash"!
Um estrondo vindo do bar. Fomos até lá. Uma mulher, já bem alterada, jogou um copo de vidro no Gus, e felizmente errou. Arremessou na verdade tudo que ela viu pela frente no balcão. Não é fácil entender o inglês do norte da Inglaterra, e naquela situação geral, mais ainda. Aos poucos fomos descobrindo que, na verdade, estávamos em um hotel localizado em um digníssimo bairro de meretrizes e que aquele bar era, digamos, um ponto de encontro de tudo e todos. E os quartos estações de trabalho.
A confusão continuou porque ela não estava sozinha, mas no final das contas foi levada embora por outros. Enquanto isso, já tínhamos nos tornado os melhores amigos de um torcedor do Liverpool que insistia em pagar Sambucas para todos nós. Que bebida horrível.
Não citarei o nome, porque ele prometeu nos matar se contássemos sua história. Seu primo foi um dos 96 mortos no desastre de Hillsborough, e por isso ele odeia a imprensa - graças às mentiras contadas pelo The Sun. Assim a noite seguia, entre ameaças dele, declarações de amor a todos nós, vídeos cantando músicas do Liverpool e muitas Sambucas e cervejas.
A madrugada já estava alta. De repente, barulho nas janelas. Zumbis apareceram e começaram a gritar e socar as janelas para as portas serem abertas. Na verdade, não havia portas fechadas, mas eles não tinham condição de perceber isso e insistiam para deixarem-nos entrar. O João conseguiu se comunicar com eles e mostrar o caminho da entrada. Eram amigos da mulher que já tinha ido embora há muito tempo.
Em meio a tudo isso, o garçom que nos atendera no dia anterior no restaurante do hotel apareceu. Não para trabalhar, mas sim para beber. Ainda mais. Com os olhos completamente trincados, insistia em negociar produtos ilícitos.
Não tenho ideia sobre o horário em que tudo acabou. Ou que a bebida parou de ser fornecida. Gus, ou Pollos Hermanos, atuou como o secretário geral da ONU em toda confusão. Paciente, calmo, conhecendo tudo e todos que estavam ali, como se não fosse a primeira vez. Certamente nem imagina que nos forneceu uma noite de Hunter Thompson e muitas histórias.
Fonte: Gustavo Hofman
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