A vanguarda do futebol já esteve na Hungria
A cada rodada, o Campeonato Húngaro promove partidas históricas. Não pela qualidade de seus jogos, afinal, a competição está bem distante das melhores do continente, mas pelos encontros entre times que ajudaram a moldar o futebol moderno.
O termo vanguarda vem do francês "avant-garde", que é a reunião de intelectuais e artistas de um país, responsáveis pela introdução de novas e avançadas ideias, concepções e técnicas no âmbito artístico e cultural, segundo o dicionário Michaelis. Aplicada ao futebol, a vanguarda do esporte bretão muda de país com o passar das décadas.
Em "A Pirâmide Invertida", o autor Jonathan Wilson dedica mais de um capítulo ao papel preponderante na evolução tática do futebol que a Europa central teve. "O futebol na Europa central era um fenômeno quase totalmente urbano, assentado ao redor de Viena, Budapeste e Praga. E nessas cidades é que a cultura dos cafés era mais forte. Os cafés floresceram perto do final do Império Habsburgo, transformando-se em salões públicos onde homens e mulheres de todas as classes se misturavam, lugares que passaram a ser notados especialmente por seu aspecto artístico, boêmio".
Eram ainda os anos 1920, e o que se viu nas décadas seguintes foi um avanço que ditaria as tendências do futebol por tantas outras. Nos anos 1950, a Hungria foi a nação que mais inovou no futebol. Introduziu novas ideias, concepções táticas diferentes de tudo que era jogado até então e apresentou ao mundo a preparação física como fator fundamental no desenvolvimento do jogo. A seleção húngara venceu as Olimpíadas de 1952 e perdeu um único jogo entre 1950 e 54, justamente a final da Copa do Mundo para a Alemanha, por 3 a 2. Antes, humilhou os ingleses em Wembley e depois em Budapeste.
A seleção de ouro marca o imaginário nacional até os dias atuais. Ferenc Puskás, craque desse time e um dos melhores jogadores de futebol em todos os tempos, ultrapassa todas as barreiras do esporte mais popular do planeta. Sua história de perseguição política após o Mundial de 54 aumentou ainda mais o tamanho de sua lenda dentro da Hungria. Puskás é um herói nacional, reverenciado por todos e com camisas e adereços encontrados em todas lojas de souvenirs para turistas em Budapeste.
Neste final de semana, seu legado esteve em campo. A Puskás Akadémia, clube fundado para homenagear o ex-jogador e focado na formação de jovens atletas, recebeu o Budapest Honvéd, eterno time de Puskás, antes de ele se transferir para o Real Madrid em 1958. A partida aconteceu em Felcsút, distante 40 minutos da capital, sede da jovem equipe, fundada em 2005. A Pancho Arena, lembrança do apelido de cheinho de Puskás, recebe um bom jogo, que terminou com surpreendente vitória, de virada, do Honvéd por 2 a 1.
A Puskás Akadémia soma 39 pontos e ocupa a segunda posição da Nemzeti Bajnokság I, enquanto o Honvéd é o 11o, penúltimo colocado, com 11 pontos a menos. Quem lidera é o Ferencváros, atual bicampeão e maior potência do país com 31 títulos. Desde que foi fundado, em 3 de maio de 1899, o Fradi não conquistou a primeira divisão somente na década de 1950, justamente quando o Honvéd dominou o futebol húngaro - na semana passada, os dois se encontraram, com vitória do Ferencváros.
Bem além de Buda, a cidade alta à margem esquerda do Rio Danúbio, e Peste, a cidade baixa na margem direita do rio, há vários distritos que contam a história da população e do futebol local. Os trams que saem do centro histórico levam a Kispest, distante bairro, local de trabalhadores e gente simples. Lá está a origem do Kispest Honvéd, que depois se transformaria no Budapest Honvéd e formaria a base da Geração de Ouro.
József Bozsik, Zoltán Czibor, László Budai, Gyula Grosics, Sándor Kocsis fizeram do Honvéd, ao lado de Puskás, uma equipe lendária. Eram tempos difíceis no país, o continente ainda estava arrasado pela II Guerra Mundial e o governo comunista impunha regras duras à população. O clube foi abraçado pelo exército da Hungria e seus jogadores ganharam cargos - como Ferénc Puskás, que se tornou major e ganhou outro apelido: Major Galopante. A derrota para a Alemanha rendeu perseguições a muitos ídolos e alguns, como Puskás, optaram pelo exílio futebolístico/político.
Até pouco tempo atrás, ainda era possível pegar um dos trams para Kispest e acompanhar um jogo do Honvéd no Bozsik József Stadion. A antiga casa foi demolida em 2019 e o clube está construindo uma nova e moderna arena. Sinal dos tempos modernos, que já tiveram a vanguarda futebolística justamente nesse bairro.
Nesse passado glorioso, os treinadores húngaros passaram a ser procurados para comandar times e seleções pelo mundo. Béla Guttmann deixou o Honvéd em 1957 e partiu para a América do Sul, onde comandou o São Paulo e foi mente influente no estilo de jogo brasileiro.
A última vez que a seleção húngara disputou uma Copa do Mundo foi em 1986. Na Euro, após longo hiato, voltou à competição em 2016 e surpreendeu o continente com a classificação para as oitavas de final. Só que o tempo parou na linha evolutiva do futebol húngaro. Após toda magia dos anos 1950, os anos seguintes foram de estagnação, pouco investimento e um país fechado à inovações, enquanto toda Europa se divertia com os ensinamentos que os húngaros apresentaram ao mundo.
Há como recuperar o tempo perdido? Não, hoje em dia é possível apenas valorizar o tempo passado. O futebol segue como o esporte mais popular da Hungria, as torcidas dos grandes clubes são completamente apaixonadas, mas a nação - assim como tantas outras no leste da Europa - sofre com a economia e a baixa renda de sua população. O futebol está inserido nesse contexto e é praticamente impossível para um clube húngaro, atualmente, brigar de igual para igual com as potências ricas europeias.
O bom do esporte, no entanto, é que sonhos não são proibidos. Nem que seja um sonho perdido em uma gelada noite de Champions League em Budapeste. Sob os olhares de Puskás e a Mágicos Magiares.
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