Bruno Henrique lamenta após gol perdido pelo Flamengo
MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images
Em tempos de pandemia, onde praticamente toda a humanidade sofreu algum tipo de impacto direto em sua vida, o futebol passa por sua maior parada das últimas décadas. Uma rotina totalmente diferente para todos que cercam o esporte e, principalmente, para quem o pratica. Se os danos passam pela parte financeira, física e médica dos clubes, a mente não deixaria de ser um aspecto preocupante nessa ruptura tão brusca em nosso cotidiano.
No quarto episódio da série “Efeito quarentena”, o blog agora tenta traçar a realidade e o futuro da saúde mental dos atletas em meio ao distanciamento social. Para isso, ouviu especialistas do Brasil e da Europa para entender suas realidades e preocupações neste momento.
Clique - Episódio 1: treinadores e auxiliares se apegam à tecnologia
Clique - Episódio 2: como a preparação física tenta minimizar danos?
Clique - Episódio 3: médicos e fisioterapeutas usam protocolos de bem-estar
Obviamente que qualquer profissional do futebol está sujeito a ter adversidades a ser superadas neste aspecto, mas o jogador em si acaba se vendo em uma realidade totalmente diferente. E a psicologia, como mais uma das áreas estratégicas dos clubes, tem tentado minimizar os danos.
Acostumados a viver e trabalhar de forma muito coletiva desde muito jovens e cercados de pessoas em todos os momentos, seja com muitos amigos, companheiros de trabalho ou mesmo em estádios cheios, estes atletas agora se deparam com uma convivência extremamente limitada. Alguns, longe de parentes e do próprio país, acabam vivenciando tudo isso sozinhos.
E essa preocupação vai muito além dos seus clubes propriamente, mas sim de uma maneira geral da população. Por exemplo, a OMS, além de todo trabalho contra a Covid-19 envolvendo planejamento de pesquisas e protocolos, se mostra extremamente preocupada com a saúde mental da população, inclusive já prevendo aumentos significativos de casos de depressão ao redor do mundo. A FIFA, por sua vez, também se mantém atenta a estes casos. Por conta disso, vem alertando confederações e planejando ações para minimizar danos futuros.
- Os impactos ainda são cientificamente desconhecidos, dada a novidade da situação. Mas sabemos que situações de estresse prolongado podem incidir em uma baixa da imunidade, dificuldades de concentração e ansiedade. A própria ansiedade por si só pode trazer diversas outras complicações, como dificuldade de concentração, tomada de decisão, de descanso e até conflitos com outras pessoas – explica Maurício Pinto Marques que é doutor em Psicologia do Esporte pela Universitat Autònoma de Barcelona e atualmente atende atletas do futebol em consultório.
Os profissionais da área alertam muito sobre a necessidade de se abordar cada caso de maneira exclusiva, já que cada indivíduo tem a capacidade de lidar com problemas de maneira totalmente diferente. Até por isso, o impacto de todo este momento vai variar muito de jogador para jogador. A estrutura que tem em casa para se manter ativo, por exemplo, é algo que poderá ser decisivo. A quantidade de pessoas que lhe faz companhia durante o confinamento e até o nível financeiro que cada uma já atingiu na carreira são fatores para se levar em conta. Principalmente pelo fato de sabermos que, na realidade brasileira, os atletas com altos salários e em clubes grandes, são apenas uma parcela do mercado.
Uma das grandes surpresas da temporada 2019/2020 na Europa, o Levante tem contado com um trabalho minucioso em cima da saúde mental de seus atletas. O clube, que está longe de ser uma das potencias financeiras da própria Espanha, tem Juan Miguel Bernat com um de seus profissionais desta área. Em entrevista ao blog, ele conta como tem tentado ajudar os jogadores neste momento de muitas incertezas.
- Como qualquer pessoa hoje em dia, o jogador de futebol está sujeito a muitos questionamentos: o que acontecerá com a doença no futuro? Algum membro da família está doente? E o que vai acontecer com o meu contrato? A competição voltará? A incerteza gera inquietação e preocupação. Para aliviar esse desconforto, a gente tem orientado todos a seguirem alguns hábitos. Um deles é aceitar que você não pode agir e concentrar em tudo o que depende diretamente de você e em tudo o que você pode controlar. Manter-se atento às realidades do presente e não prever o que pode acontecer no futuro. Respeitar hábitos e rotinas, para ter certa estrutura no seu dia a dia – nos conta.
Psicólogo esportivo do São Paulo, Augusto Carvalho chama a atenção para aspectos até que não envolvem o futebol como algo para ajudar a controlar melhor as emoções. Essa “gestão dos pensamentos”, para o profissional, é muito importante.
- É fundamental que os atletas busquem gerenciar, de forma positiva, suas emoções. Os pensamentos influenciam nas emoções, sendo até determinantes para a resposta emocional do indivíduo, ao passo que as emoções influenciam na capacidade de agir e de tomar decisões. Assim, quanto melhor for a qualidade dos pensamentos e, consequentemente, das emoções, melhor será a forma como o atleta irá enfrentar a situação. Além da organização de uma rotina diária com estabelecimento de atividades e horários, uma boa alimentação e hidratação, é importante que eles desfrutem de momentos de lazer e diversão como brincadeiras em família, jogos educativos, videogame, filmes e leitura. São aspectos fundamentais para levar a vida de forma saudável – explica.
Busca por referências vai de submarinos a estações espaciais
Sergi Enrich, capitão do Levante, motiva seus companheiros durante jogo
Juan Manuel Serrano Arce/Getty Images
Um dos grandes dilemas de área da psicologia esportiva neste momento, assim como qualquer outra, é a busca por referências já estudadas para aplicação. Criar protocolos e metodologias, por mais complexo que seja, acaba por ser muito importante nesta realidade de pandemia.
Por ser uma situação praticamente inédita a nível mundial, a busca por conhecimento acaba sendo feita em outros campos que, por mínimo que seja, tenha experiência semelhantes com as vividas pelo mundo esportivo atualmente. É o que tem feito o Levante que, ainda em busca de uma vaga inédita na próxima Champions League, destrincha saídas para cuidar da saúde mental de seus atletas e profissionais do futebol.
- No departamento de psicologia de alto desempenho da Levante UD, realizamos uma revisão bibliográfica de estudos científicos sobre como um estado prolongado de confinamento pode afetar psicologicamente. Esses estudos se referem ao trabalho em estações espaciais, submarinos ou mesmo estações polares. De acordo com alguns desses estudos (Liberman et al., 2005; Gunderson, 1966; Palinkas et al., 2000), processos como velocidade de reação e processamento, manutenção da concentração, capacidade de aprendizado, memória e humor, podem ser temporariamente alterados – afirma Juan Miguel Bernat.
Já Augusto Carvalho, que trabalha principalmente nas divisões de base do São Paulo, o conceito de “inteligência emocional” pode ser decisivo nas dificuldades recentes. Principalmente pelo fato de atletas e profissionais do futebol conviverem com a falta de prazos para o retorno à normalidade.
- Chamamos de inteligência emocional a capacidade do indivíduo de permanecer motivado e persistir em seus objetivos mesmo diante de situações adversas, mantendo o controle dos impulsos e impedindo que a ansiedade interfira na sua capacidade de raciocinar e de ser empático e autoconfiante.
- É, portanto, através da inteligência emocional que o indivíduo se percebe, consegue entender e gerenciar suas atitudes e consegue canalizar as suas energias e o seu foco para situações em que ele tem controle, de modo que não fique desperdiçando energia e tempo se preocupando com situações sobre as quais não tem controle. Como, por exemplo, a falta de prazo para retornar à rotina normal diante da atual pandemia – completa o psicólogo do Tricolor.
Se treinadores e preparadores convivem cheio de dúvidas sobre a real situação física que os atletas retornaram para as atividades, o aspecto psicológico também deveria ser uma prioridade quando treinamentos e jogos forem liberados. Juan Miguel Bernat ressalta essa importância:
- Por isso, é muito importante poder ajustar as expectativas no retorno ao treinamento. Jogadores e treinadores devem estar cientes e assumir que levará tempo para retornar ao nível mostrado antes do intervalo. Seria altamente recomendável que, no retorno ao treinamento, fosse realizada uma avaliação psicológica dos jogadores.
A falta de competição para seres altamente competitivos
O CT de Cotia é onde o São Paulo desenvolve suas categorias de base
Rubens Chiri/São Paulo FC
Se tem algo que difere o atleta profissional para qualquer outra pessoa comum é a competitividade. E vivenciar isso desde tão cedo em qualquer esporte acaba por criar uma raiz muito grande em suas vidas, algo que passa a ser, sem nenhum exagero, parte da sua própria existência.
Agora vamos fazer um exercício: imagine cortar do nada algo que está extremamente entrelaçado com a sua essência como pessoa. Pense em algo essencial em sua vida, que você faz desde muito novo e que, sem nenhum aviso prévio, lhe tiram. Com certeza seria um trauma bastante significativo na sua maneira de ser.
- O atleta adora esportes e adora competição. Faz isso desde sempre. Ele gosta de desafiar a si mesmo, superar os rivais e superar a si mesmo. Nesta situação, o jogador pode continuar praticando esportes, mas fica sem a possibilidade de competir e, portanto, sem uma de suas motivações fundamentais da vida – afirma Juan Miguel Bernat.
Para o profissional do Levante, existem maneiras de se diminuir estes abalos que os atletas de alto rendimento têm sentido na pele. Um deles é ressignificar suas motivações. Manter o foco no que faz hoje para colher frutos num futuro próximo.
- Existem maneiras de aliviar a ausência de concorrência. O jogador de futebol deve estar ciente de que, embora ele não veja seu rival, ele está competindo contra ele todos os dias. O atleta deve estar ciente de que seus rivais estão na mesma situação e que pode "tirar vantagem” hoje em dia. Assim retornaria aos jogos com uma vantagem competitiva sobre o rival – explica.
O espanhol também chama a atenção para a necessidade de um trabalho em conjunto das áreas do futebol neste momento. Bernat afirma que cabe aos profissionais de preparação física, por exemplo, passar exercícios que também estimulem os jogadores na parte mental.
- Outro fator a ser levado em consideração é que, durante as sessões de treinamento do dia a dia normal, pré-pandemia, o jogador de futebol não apenas trabalhava o corpo, mas também estava sujeito a uma carga cognitiva significativa, devido ao grande número de estímulos aos quais ele deve comparecer. Embora eles agora continuem treinando em casa, se a equipe técnica não fornecer uma carga cognitiva considerável, o jogador poderá cansar mentalmente. E isso pode afetar o sono, a presença pensamentos negativos... É interessante, portanto, que essas áreas mais técnicas forneçam uma carga cognitiva aos jogadores, por exemplo, com a análise de sua estação, seus pontos de melhoria, de rivais... – conclui Juan Miguel Bernat.
Indecisão e pressão para a volta dos jogos podem impactar
Ayoze Perez reage após perder gol pelo Leicester
LINDSEY PARNABY/AFP via Getty Images
O fato de não saber o que vem pela frente talvez seja o grande problema de todos que habitam o planeta neste momento. Evidentemente isso não deixaria de ser uma preocupação dos jogadores de futebol e profissionais que vivem do esporte. E está nessa indecisão o maior problema para lidar nos dias atuais.
A pressão de confederações e, por vezes, do próprio clube também acabam sendo um complicador para a saúde mental dos atletas. É o que destaca Maurício Pinto Marques que recentemente teve passagens pelo futebol em trabalhos pelo Coritiba e Aimoré-RS.
- Estamos vendo a primeira grande liga retornando, na Alemanha, em um país muito menor e menos prejudicado que o nosso. Ninguém sabe realmente o que esse contexto pode trazer para a saúde mental de todos envolvidos. Não só dos atletas, mas de comissão técnica, dirigentes... Cada um realmente é um sistema que envolve muitas pessoas. O futebol movimenta muitas pessoas. Te pergunto: como estão os jogadores do Flamengo sabendo que tem mais de 30 pessoas do seu entorno direto contaminadas? Eles podem se expressar? – questiona o psicólogo do esporte.
- Infelizmente há poucas equipes no Brasil com psicólogos no plantel profissional, que conhecem os atletas e tem um vínculo já estabelecido para que eles possam trazer suas questões. Nesse ponto o Brasil ainda está no passado – adverte.
O pós-pandemia, sem dúvida alguma, é uma das preocupações não só da área da psicologia esportiva, mas de todas as outas. Mas, olhando para o âmbito mental do jogo, algumas mudanças podem ser avistadas, pelo menos num primeiro momento.
Situações cognitivas relacionadas ao jogo podem causar impactos não só na confiança dos atletas, mas também nas escolhas durante as partidas. O fato do longo tempo inativo, sem receber os devidos estímulos de um jogo de futebol competitivo, pode prejudicar ações técnicas consideradas até simples.
- Em relação aos aspectos psicológicos, acredito que alguns atletas poderão apresentar mais ansiedade e insegurança, enquanto outros poderão apresentar mais vontade, determinação e motivação – tudo vai depender de como cada um está encarando o período em que estamos vivendo hoje. E essas questões psicológicas, por influenciarem na tomada de decisão, podem afetar a relação do jogo em si – afirma Augusto Carvalho.
Bastante atualmente nas categorias de base do São Paulo, mais especificamente no CT de Cotia, o profissional também ser impossível separar o aspecto psicológico do jogo de outras vertentes. Ele explica como todas essas áreas estão relacionadas para atletas atingirem o alto rendimento.
- O comportamento dos atletas no jogo é influenciado pelas questões físicas, técnicas e táticas, sendo que os aspectos psicológicos se relacionam a todo momento com tais questões, influenciando e sendo influenciados. Ou seja, a capacidade física e os aspectos técnicos e táticos influenciam e são influenciados, a todo momento, pela condição psicológica do atleta. Daí porque é imprescindível que o desenvolvimento de todas essas habilidades (físicas, técnicas, táticas e psicológicas) seja constante e simultâneo na vida dos atletas – termina.
Fonte: Renato Rodrigues
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