Como o futebol brasileiro explica como funcionam os bowls e as finais do futebol americano universitário
A ressaca natalina da NBA ainda nem passou direito e o fã de esportes americanos já entra em outra maratona: a dos bowls universitários. Os canais ESPN transmitirão 21 jogos nos próximos sete dias, uma média de três por dia. No meio deles estarão as semifinais do futebol americano universitário (a decisão está marcada para 7 de janeiro). Muito legal, mas, para muita gente, isso tudo soa como um idioma desconhecido. Afinal, o que são esses “bowls”? E como foram definidos os semifinalistas do campeonato?
São perguntas recorrentes, até porque o sistema de disputa da FBS (primeira divisão do futebol americano universitário) é misterioso até para alguns amantes de NFL, quanto mais para o seguidor mais ocasional. Mas, para entendê-lo, talvez a analogia mais fácil esteja bem longe do esporte americano: o futebol brasileiro.
Vamos começar com a fórmula de disputa.
Atualmente, definir o melhor clube do Brasil é simples: os 20 times da primeira divisão disputam um campeonato e o vencedor leva esse título. Mas vamos imaginar que, por um motivo qualquer, fosse obrigatório definir a melhor equipe do Brasil ao final do primeiro semestre. Como seria? Bem, seria parecido com o cenário do futebol americano universitário.
Quase todas as universidades da NCAA se dividem em conferências relativamente regionais. As equipes se enfrentam dentro de suas regiões e têm algumas partidas contra adversários de fora. Há diferença de nível técnico entre uma conferência e outra e não há confronto direto entre muitas das equipes mais fortes. Mais ou menos como no futebol brasileiro do primeiro semestre, com cada clube disputando seu estadual e tendo um ou outro jogo de Copa do Brasil e das primeiras rodadas do Brasileiro para medir a força com times de outras áreas do país.
Com poucas datas disponíveis, é difícil para a NCAA organizar um sistema de disputa que dê a todas as universidades um mínimo de dez jogos por ano e ainda permita que todos os grandes se enfrentem para decidir o melhor. Há ainda uma definição do campeão de cada conferência, mas isso ainda não define o campeão nacional. Por isso, foi adotado o sistema de bowls e rankings.
Um grupo de analistas faz um pré-ranking com os times que consideram mais fortes no início do campeonato. A cada rodada, as equipes vão subindo ou descendo de acordo com os resultados e com o nível de jogo apresentado. Perdeu de um time pequeno? Perde muitas posições. Perdeu de um time grande? Perde algumas posições se foi um jogo apertado, mas pode perder muitas se tomou uma lavada. Ganhou de um grande? Ganha muitas posições, ainda mais se foi uma sacolada. Ganhou de um pequeno? Ganha algumas posições, mas pode até estagnar ou perder se foi apertado e era obrigação dar um vareio. Essa atualização pode ser feita por analistas ou por um computador a partir de uma fórmula matemática.
Voltando ao futebol brasileiro: vamos imaginar que estamos em maio e precisamos definir o melhor time do país. Talvez essa fosse a melhor solução, pegando a classificação do Brasileirão anterior como ponto de partida e ajustando o ranking cada rodada dos estaduais (isso pressupondo que todas as equipes sempre jogassem com força total nos estaduais).
Por exemplo, o Palmeiras começaria como líder, mas poderia perder essa posição se tropeçasse em Red Bull Brasil e Botafogo de Ribeirão logo de saída no Campeonato Paulista enquanto Flamengo e Grêmio arrancam bem no Carioca e no Gaúcho. Enquanto isso, o Bahia poderia acertar o time e vencer bem todo mundo no Baiano e nas primeiras fases da Copa do Brasil. O Tricolor ganharia posições gradualmente até o clássico contra o Vitória ou adversários da Série A nacional (Fortaleza, Ceará e CSA) no Nordestão, quando uma vitória valeria uma subida acentuada.
Claro, haveria a ponderação em cima da força do adversário, mesmo quando não for confronto entre dois grandes. Uma vitória contra um time do interior que está na Série B nacional (São Bento, Ponte Preta, Guarani, Brasil de Pelotas ou Londrina, por exemplo) teria mais peso que uma sobre um time que não tem divisão nacional alguma (America-RJ, Mirassol ou URT, por exemplo). Mas, claro, um clube teoricamente muito fraco poderia se mostrar mais forte - e valorizar os resultados obtidos contra ele - se fosse acumulando boas atuações contra os grandes no seu estadual e, eventualmente, na Copa do Brasil.
Enquanto boa parte dos jogos forem entre grandes e pequenos, haveria muitas distorções. Mas, quando chegam as finais dos estaduais e as primeiras rodadas do Brasileiro, há mais confrontos diretos entre as equipes mais fortes e teríamos uma noção maior de quem são realmente os melhores. Um time que subiu no ranking por destruir adversários no seu estado poderia ver tudo ruir quando chegasse o Brasileiro, ainda mais se o seu rival local também começasse mal. Seria a prova que aquela sequência de bons resultados foi conquistada contra oponentes muito frágeis.
Durante décadas, a NCAA funcionou mais ou menos assim. E, para arrematar a temporada, havia alguns “bowls”. Tratam-se de jogos independentes, normalmente organizados por instituições sem fins lucrativos, que convidam universidades que tenham feito boas campanhas para uma partida de fim de temporada. Muitos dos bowls são previamente vinculados a uma ou duas conferências, mas há casos de convites a partir do desempenho em campo.
Todo mundo fica feliz, a seu modo. O vencedor leva o título e a projeção de vencer uma partida importante. O “dono” do bowl pega o lucro e destina à causa que defende (ainda que tenha havido denúncias nos últimos anos de que nem sempre isso acontece como deveria). Os estudantes das universidades em questão aproveitam o jogo para viajar a um lugar diferente no recesso de fim de ano. Os torcedores que não viajam têm o que ver na TV entre um encontro familiar e outro durante as festas.
Seria o equivalente, no futebol brasileiro, a criar vários torneios espalhados pelo país após a interrupção da temporada no meio do ano. Poderia haver o Taça Churrasco (os nomes caricatos seguem a tradição do futebol americano universitário), reunindo o time mais bem ranqueado do Rio Grande do Sul com um outro time do Sul que tenha feito boa campanha. Ou a Taça Ponte Aérea (já até imagino potenciais patrocinadores) entre os times mais bem ranqueados de Rio de Janeiro e São Paulo que não estejam em outro torneio. A Taça Café-com-Leite poderia ter um mineiro e um paulista. A Taça Lampião teria os dois nordestinos com melhor posição no ranking, ou um nordestino contra um clube de outra região. A Taça Pirarucu poderia reunir o melhor do Norte com um de outra região. A Taça Candango seria disputada no estádio Mané Garrincha de Brasília e teria obrigatoriamente um time do Centro-Oeste.
Os bowls universitários serviam como instância final para um time se posicionar no ranking nacional. Algum tempo depois era anunciado o campeão (ou campeões, em épocas em que havia duas listas diferentes). Claro, havia uma enorme polêmica, pois muitas equipes terminavam com campanhas iguais e a diferença era o peso que os analistas ou a fórmula matemática deu para cada vitória. Se você está seguindo nossa analogia e aplicando o sistema da NCAA ao futebol brasileiro, certamente já pensou que haveria muita confusão, acusação de favorecimentos a certos times ou de perseguição a outros.
A partir de 1999, o futebol americano universitário tentou contornar um pouco a situação e criou o BCS National Championship Game, nome pomposo para a final. Os bowls continuam sendo disputados, até porque muitos são lucrativos - não à toa, houve uma explosão de novos bowls nas duas últimas décadas - e muita gente fica feliz com a existência deles, mas os dois primeiros colocados no ranking medem forças em um confronto direto. Aí não tem mais título dividido por divergência entre rankings ou polêmica de “meu time ficou em segundo, mas era melhor que o primeiro”.
Ainda assim, as confusões seguiram. A definição entre os dois primeiros do ranking ia para o campo, mas havia quem contestasse a seleção dessas duas equipes. Com mais de 120 times no FBS (atualmente são 129), inevitavelmente vários terminam com campanhas como 12-0 (12 vitórias, zero derrota) ou 11-1, e torcedores de universidades na terceira, quarta ou quinta posição do ranking achavam - às vezes com razão - que podiam estar na finalíssima. Tinham de se contentar com a disputa de um bowl de peso, mas não era a mesma coisa.
A partir da temporada 2014-15, a NCAA criou o playoff com os quatro primeiros do ranking. Para caber no calendário, os seis bowls mais importantes foram separados e, a cada ano, dois deles valem como semifinal do campeonato (seguem valendo o título do bowl). Uma semana depois é disputada a decisão nacional.
Fim de polêmica? Claro que não. Ainda há universidades que ficam de fora dos playoffs e tinham campanhas que justificavam a presença no mata-mata. Mas ampliar ainda mais a fase final, criando as quartas de final ou uma repescagem para a quinta e a sexta no ranking, exigiria uma data a mais no calendário. Por isso, a perspectiva é continuar no modelo atual por mais um tempo, ainda que muita gente conteste.
Ainda bem que, no futebol brasileiro, não há obrigação de definir quem é o melhor time no meio do ano. Não haveria conversa de bar suficiente para lidar com as polêmicas de uma definição de finalistas por ranking. Até porque, mesmo tendo um torneio dedicado apenas a isso, o Brasil consegue ter polêmica sobre quem é ou não campeão nacional de futebol.
Fonte: Ubiratan Leal
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