Quando o futebol se basta
Pense num jogo de futebol em que o sujeito responsável pelos dois gols da virada do seu time deixa o campo e, ainda de uniforme, suado e cheio de terra, encontra sua mulher que há poucos minutos sentava no concreto frio das arquibancadas para caminhar em meio aos torcedores até seu Peugeot 206 estacionado a poucos metros da entrada do estádio, que ele mesmo sai dirigindo.
Isso acontece, e não estamos falando da rua Javari, onde um misto de velhos senhores de camisas grená, famílias curiosas e até alguns hipsters mais interessados nos canolis do que em futebol se juntam para ver um jogo do Juventus da Mooca em divisões inferiores do nosso futebol.
Isso acontece, e pude comprovar in loco no último dia 7, em Montevidéu, na primeira divisão do futebol uruguaio. Isso mesmo: na primeira divisão do futebol bicampeão do mundo que, até antes da "Era Tite", podia se orgulhar até mais que o Brasil pelo desempenho recente de sua seleção.
O jogo do vídeo acima, entre o lanterninha Sud América e um Montevideo Wanderers que vinha de quatro derrotas seguidas e só por isso fora alijado da briga pelo título do Apertura, aconteceu no acanhado estádio Parque Palermo, a poucos metros do histórico e glorioso Centenário. O jogador em questão, Cristian Palacios, é um bicampeão uruguaio pelo Peñarol.
Com um misto entre surpresa e apreço pela singeleza, saí de lá emocionado, admito.
Não sou da turma que odeia as novas arenas, o conforto, as cadeirinhas, as opções gastronômicas, os banheiros limpos e, vá lá, contanto que com moderação e algum senso de ridículo nessa ânsia meio doida que temos de copiar os norte-americanos, nem mesmo contra uma ou outra ação para entreter a turma das arquibancadas nos intervalos.
Por mais que nossa memória afetiva muitas vezes nos pressione a bradar pelo contrário, evoluções costumam ser bem-vindas, além de inevitáveis. E conforto, convenhamos, não machuca ninguém.
Ao mesmo tempo, é bom demais perceber que o futebol não precisa transformar o jogo em si numa parte diminuta de um show hollywoodiano com músicas, luzes e narradores histéricos. É bom ver que ele sobrevive (humildemente, mas bem) sem câmeras de beijos, coreografias pasteurizadas e outras pataquadas. Que não carece de sorteio, salsicha gourmet, pompons e hashtags.
A paixão de um velho senhor por volta dos 80 anos, que ao fim do jogo caminhou com dificuldade para desamarrar a pequena faixa do Wanderers que colocara no alambrado, dobrá-la com carinho e guardá-la na mochila, tem valor maior que tudo isso. E se bater a fome, a gente se vira, haverá sempre um cafezinho requentado e o velho amendoim para recorrer.
É sempre bom constatar que o futebol precisa de muito pouco para ser tão apaixonante. Precisa apenas de futebol.
Fonte: Gian Oddi
Quando o futebol se basta
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