Cultura e muita história em um simples jogo do Bohemians pelo Campeonato Tcheco
O distrito de Vršovice, em Praga, é uma das atrações da capital tcheca. Os diversos cafés espalhados pelas ruas movimentadas, os bares que agitam a noite e as muitas lojas chiques revigoraram a região nos últimos anos. As linhas retas e cinzas do período comunista foram substituídas pelas cores e pelos turistas nas ruas, cortadas pelos tradicionais trams tchecos. Símbolos de mudanças e transformações, sem perder a tradição e a identidade com o passado.
O futebol está presente no cotidiano de Vršovice. Aifnal, lá estão dois times muito tradicionais da cidade e que representam bem a própria região. O poderoso Slavia Praga, que rivaliza com o Sparta pelo status de maior clube do país, simboliza a força e a tradição do distrito. Já o Bohemians resgata a história e a formação de Vršovice.
Com capacidade para pouco mais de 6 mil torcedores, o pequeno estádio Dolícek é a casa do alternativo clube. As arquibancadas cercam apenas metade do gramado, enquanto a outra fica exposta para as ruas e as casas ao lado, separada apenas por um simples muro. No último sábado, foi palco de mais um jogo pela Fortuna Liga, como é chamado o Campeonato Tcheco. Na luta para se distanciar do rebaixamento, o Bohemians recebeu o Slovácko, da cidade de Uherské Hradište. A vitória fez com que os visitantes subissem para a quarta posição, com 30 pontos, o dobro dos donos da casa, que estão cinco acima da zona de descenso.
Jogos assim, no entanto, permitem ao apaixonado por futebol e por história mergulhar no passado da região. Afinal, o contexto do Bohemians Praha 1905 é absolutamente particular. O clube surge como AFK Vršovice, em 1905, mas muda de nome 22 anos depois devido a uma peculiar excursão pela Austrália. Assim, para facilitar a compreensão dos australianos, o clube passa a se chamar Bohemians, homenagem à região de Praga (Boêmia) e seus habitantes. Ao final do tour, que contou com 19 jogos por todo território australianos, os tchecos foram presenteados com dois cangurus, que acabaram doados ao zoológico de Praga. A relação histórica, de qualquer modo, já estava sacramentada, e assim o Bohemians passou a ter o canguru como mascote e parte integrante do escudo oficial do clube.
As curiosidades não param por aí, afinal, o Bohemians é um dos poucos times na Tchéquia a contar com grupos de torcida declaradamente de esquerda. Há, evidentemente, diversidade política entre todos os torcedores, mas há setores bem definidos em relação ao posicionamento ideológico, mantendo, inclusive, relações com o St. Pauli, da Alemanha, outro clube marcado por essa questão. Em 2005, quando o Bohemians enfrentou a maior crise financeira de sua história, foram os torcedores que salvaram o clube da extinção, com o pagamento de dívidas. De qualquer modo, não foi o suficiente para impedir o rebaixamento à terceira divisão e a briga pelo nome, contestado por um grupo de empresários. A disputa perdurou alguns anos, mas se encerrou com o desaparecimento do novo "Bohemians".
Aliás, a própria nomenclatura oficial mudou durante as décadas e acompanhou a história da Tchecoslováquia. Entre as décadas de 1940 e 60, o clube se chamou Sokol Železnicari Praha, Sokol CKD Stalingrad Praha, Spartak Praha Stalingrad e CKD Praha, até recuperar o Bohemians em 1965. Em campo, as duas décadas seguintes foram as mais marcantes. Cada vez mais popular no país, o Bohemians se acostumou a disputar os títulos regionais e a participar de competições continentais.
Estreou na Copa da UEFA de 1975-76, quando foi eliminado pelo mítico Honvéd, da Hungria, logo na primeira rodada. A temporada inesquecível, no entanto, aconteceu em 1982-83, quando o Bohemians superou todos os rivais tchecoslovacos e se consagrou campeão nacional - seu único na elite. Além disso, ainda alcançou as semifinais da Copa da UEFA, caindo para o Anderlecht. O feito histórico em casa garantiu participação inédita da Copa dos Campeões da Europa, onde eliminou o Fenerbahçe na primeira rodada, mas depois caiu no confronto da Europa Central contra o Rapid Viena. A partir dos anos 1990, com a crise financeira da região e a separação da Tchéquia e da Eslováquia, o Bohemians perdeu relevância esportiva e se acostumou a frequentar a segunda divisão.
O clube se reorganizou nos últimos anos e vive o momento de maior estabilidade na Fortuna Liga, com oito temporadas consecutivas na elite. Por trás de tudo isso, há um ídolo do Bohemians e referência para o futebol tcheco: Antonín Panenka. Considerado um dos maiores jogadores na história da Tchecoslováquia, ele defendeu o Bohemians de 1967 a 81. Panenka empresta seu nome ao que, no Brasil, chamamos de cavadinha, ou seja, o pênalti cobrado com uma batida leve, por baixo da bola. Isso porque em 1976, na decisão da Eurocopa contra a Alemanha Ocidental, ele converteu a última penalidade máxima cobrando dessa maneira e supreendendo o goleiro Sepp Maier. Desde então, na Europa, esse tipo de cobrança leva o nome Panenka. Ele é presidente do Bohemians atualmente, e no ano passado superou uma das maiores adversidade de sua vida. Após ficar em condições críticas por causa da Covid-19, Panenka se recuperou e, aos 71 anos, voltou às atividade no clube do coração.
O rendimento do time, porém, certamente não agrada o dirigente. Na partida do último sábado, foi superado pelo Slovácko que teve mais posse de bola, criou bem mais oportunidades de gols e dominou o confronto, para decepção dos torcedores que se apoiavam no muro na rua para assistir a peleja. O Bohemians é comandado em campo pelo experiente meio-campista Josef Jindrišek, de 39 anos, desde 2009 no clube. Ele é um dos jogadores centrais no meio, dentro do 4-2-3-1 definido pelo técnico Ludek Klusácek. Há ainda outro jogador relativamente conhecido no futebol internacional: o centroavante tcheco Tomáš Necid, 31 anos, que rodou por vários países e clubes.
São 18 times na primeira divisão da Tchéquia, acréscimo de dois em relação à temporada passada, quando não houve rebaixamento por causa da pandemia de coronavírus. O campeonato tem sido dominado nos últimos seis anos por Viktoria Plzen e Slavia Praga, atual bicampeão. Enquanto os dois primeiros colocados se garantem na segunda fase qualificatória da Champions League, os três últimos são rebaixados.
Aos 25 minutos, Jan Kalabiška abriu o placar para o Slovácko. A partida foi definida poucos minutos depois, aos 32 e 37, com dois pênaltis marcados para os visitantes e convertidos por Jan Kliment. No segundo tempo, David Puškác descontou para os mandantes aos 28 e Necid, quatro minutos depois, teve a chance de fazer o segundo, em mais um pênalti, mas chutou para fora. Vale ressaltar: nenhuma cobrança à la Panenka.
O mais incrível, ao assistir o jogo, foi sentir o clima do local, mesmo sem a festa da torcida. Os poucos torcedores nos muros, cantando, colaboraram, mas a atmosfera desse clube é definitivamente especial. Portanto, na sua próxima viagem a Praga, reserve um tempo para conhecer o distrito de Vršovice. Depois que todo esse inferno da pandemia passar, quem sabe até mesmo garantir um lugar nas arquibancadas do Dolícek e voltar ao Brasil com uma camisa do Bohemians Praha 1905.
Cultura e muita história em um simples jogo do Bohemians pelo Campeonato Tcheco
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