Onda de violência no futebol pede intervenção firme do Estado, dos esportistas e de todos nós
Gabriela Anelli, de apenas 23 anos, está morta. Por uma garrafada atirada por um torcedor do adversário. Ela queria ver Palmeiras x Flamengo. Não conseguiu. E não verá mais nenhuma partida. Ela será mesmo só mais uma vítima da violência no nosso futebol? Ou a morte dela vai fazer com que as coisas sejam diferentes a partir de agora? A polícia prendeu em flagrante Leonardo Felipe Xavier Santiago, flamenguista de 26 anos, por ter atirado garrafa e ter causado a morte da jovem palmeirense. Tudo indica que ele passará alguns aninhos apenas na cadeia, talvez com algumas regalias em algum tempo, talvez esteja frequentando estádios em temporadas não tão distantes. A impunidade é uma das doenças do Brasil. Crimes acontecem em quase todos os jogos de futebol, às vezes em aeroportos, hotéis, motéis, bares, baladas etc (de racismo a homofobia, de ameaça a agressão, de roubo a morte). A paixão pelo esporte seria o combustível e também a desculpa para essa onda de violência. Mas tem muito mais coisa por trás disso tudo. E coisas que, infelizmente, não são tão belas como a paixão.
Nada justifica a violência. Não importa se é contra jogador, treinador, árbitro, dirigente, jornalista, torcedor. O que digo aqui é óbvio, e existem leis para punir quem causar algum tipo de dano. Mas neste país, como escrevi no post anterior, quase ninguém acredita nas instituições, nem mesmo na Justiça. Há uma certa sensação, que é antiga, de que o futebol é um mundo à parte, que tudo é permitido quando se está em um estádio. Não se vê alguém depredando o metrô quando se está indo para o trabalho ou para a escola, mas não raramente vemos vandalismo em patrimônio público antes ou após partidas de futebol. Torcedores, sobretudo os “organizados”, atacam em bando adversários, rivais. Isso vem pelo menos desde a década de 90 com alguma frequência no país (a violência ligada ao futebol começou para valer no nosso continente nos anos 60, quase simultaneamente nasceram muitas torcidas organizadas). Tanto que em São Paulo a “solução” foi adotar torcida única nos jogos entre os times grandes. Hoje, até mesmo quem contesta essa decisão, que impede o direito de ir e vir, vai preferir essa medida polêmica a ver mais mortes estúpidas como a da Gabriela Anelli.
Torcedora do Palmeiras faleceu após uma briga na frente do Allianz Parque
Na Inglaterra, o genuíno país do futebol, a onda de hooliganismo foi abortada com uma intervenção firme do Estado. O Relatório Taylor nasceu após a tragédia de Hillsborough em 1989. Poucos anos depois, surgia a Premier League, liga nacional mais vista e admirada no mundo, um modelo que quase todos tentam copiar. Os estádios ingleses viraram um lugar para pessoas sentadas apenas, espectadores com bilhetes e assentos marcados. Houve um combate a cercas, barreiras, catracas, além de um controle maior na venda de bebidas alcoólicas dentro dos estádios. Um combo que alguns chamam de Nutella, mas que resolveu bem o problema da violência, também porque lá as punições para quem fere a lei são severas, quem atenta de alguma forma contra o futebol fica invariavelmente fora do futebol. Em 1985, devido à tragédia de Heysel na final da Copa dos Campeões da Europa entre Liverpool e Juventus, os clubes ingleses ficaram proibidos de jogar competições oficiais da Uefa por cinco temporadas. Uma medida que ajudou também na conscientização de que o Reino Unido precisava de alguma forma mudar drasticamente sua relação, mais que secular, com o esporte mais popular do planeta.
E é exatamente isso o que o Brasil precisa: mudar seu jeito de tratar o futebol. Em todos os níveis e em todas as áreas, uma união em torno da paz se faz necessária. Não dá para dirigentes de Flamengo e Palmeiras, os times mais endinheirados e poderosos do país já faz alguns anos, ficarem trocando farpas públicas nos mais diversos temas, incentivando de alguma forma a rivalidade besta entre as equipes, insinuando sistemas e esquemas sem provas. Por questões de ego e vaidade, às vezes, cartolas que adoram holofotes e que sonham com uma hegemonia de seus times passam dos limites. Mesmo após a triste morte da jovem torcedora palmeirense, o truculento presidente do Conselho de Administração do Flamengo, Luiz Eduardo Baptista, o Bap, postou algo que mostra pouca ou nenhuma sensibilidade. “Jogamos no país inteiro sem problemas com nenhuma polícia ou torcida. Mas em SP, contra o Palmeiras, nossa torcida é considerada como problemática. Há anos tentam impedir a presença da nossa torcida em jogos contra eles”. Mesmo nesse momento de luto, o cartola rubro-negro não abaixa as armas e parece desejar ainda mais conflito com o adversário “inimigo”.
O chocante caso da Gabriela Anelli fez com
que Tiago Leifert virasse um dos assuntos da segunda-feira, pois ele deu
informação errada sobre a vítima do fim de semana esportivo. Ele até pediu
desculpas depois, mas foi bastante criticado porque parecia culpar inicialmente
a Gabriela por sua morte, basicamente por ter sido de torcida organizada. Eu
citei o Tiago Leifert porque agora trato aqui da imprensa, que tem papel
importante para denunciar quem causa dano ao futebol e à sociedade e que não
deve fomentar ainda mais o ódio que vemos neste momento no esporte. Algumas
vezes, em busca de audiência ou de cliques, pessoas da mídia (tradicional e “blogueirinhos”)
passam do ponto e estimulam o ódio entre os times e seus torcedores. De fato, é
uma tremenda responsabilidade falar ou escrever sobre assuntos que envolvam
paixão, como é o caso do futebol. Termos militares que são tradicionalmente
usados no esporte, como guerra ou batalha, deveriam ser evitados, na minha
opinião. Tudo está muito bélico, há muita intolerância e raiva. A coisa já está
fora de controle.
Luan, no fim da passagem no Grêmio e depois no Corinthians, não tem sido o melhor dos profissionais há alguns anos, comentei já algumas vezes sobre isso, mas nada justifica uma perseguição seguida de agressão a ele em um motel ou em qualquer lugar. Assim como nada justifica uma garrafa no pescoço da Gabriela. A humilhação pela qual passou Gil, zagueiro corintiano, em um hotel em Minas Gerais foi deprimente. Um torcedor o chamando de vagabundo, acusando o beque de estar roubando o Corinthians simplesmente por ele não estar em seu melhor momento. A impaciência é geral, seja em São Januário ou na Vila Belmiro. Dentro de campo e nas coletivas, vemos um comportamento que vai além do competitivo por parte de integrantes de comissão técnica. Abel Ferreira, ótimo treinador palmeirense, outro dia tomou o celular de um jornalista que estava na área de imprensa. Dias depois, insano, estava partindo para cima de Calleri no jogo. E, se alguém o critica, passa a ser massacrado por adoradores dele. As mídias sociais ajudaram demais a turbinar essa onda de ódio, todo mundo passou a ter o poder de ofender e até ameaçar, acreditando que ainda passarão impunes com seus crimes na internet.
Muita gente já esperava uma morte no futebol
brasileiro para estes dias. Era algo meio que cantado. Não sabíamos se a vítima
seria jogador, treinador, juiz, jornalista ou torcedor. Acabou sendo uma garota
que não estava nessa vibe de ódio, que foi a campo apenas para desfrutar do seu
time de coração, uma jovem que deveria virar mártir na luta contra a violência
no futebol, talvez dar nome para a liga independente da CBF que só não nasce
porque há uma eterna desunião entre os clubes, porque há muita cobiça e vaidade,
pouca preocupação com o outro. Pouco tempo depois de a Gabriela agonizar na entrada do Allianz
Parque, em campo atletas de Palmeiras e Flamengo, assim como alguns torcedores,
sentiam os efeitos do gás lançado pela polícia para tentar deter um outro tumulto
fora da arena palmeirense. Sei que os sindicatos de jogadores no Brasil pouco
funcionam e às vezes são até explorados por algumas poucas pessoas, mas
deveriam pensar seriamente em paralisar o futebol por aqui enquanto este
cenário persistir. Os dirigentes deveriam se reunir e fazer um pacto pela paz,
evitando declarações ácidas contra os adversários, promovendo mais respeito e
cortando relação com organizadas.
Há muitas coisas importantes que precisam ser feitas, inclusive pelo Estado, e há tantas coisas simples que podem ser feitas por qualquer um de nós. E o resultado disso tudo tende a ser muito mais do que positivo, pode ser incalculável: o valor de uma vida.
Onda de violência no futebol pede intervenção firme do Estado, dos esportistas e de todos nós
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